Depois
de uma longa manhã, finalmente chegou a hora do almoço. Não comi
nada esse dia, estava querendo andar para enfim conseguir pensar em
algo. Coloquei os fones no ouvido, ascendi um cigarro e prossegui
pelo meu caminho. Era uma região de classe média e alguns carros
luxuosos passavam de um lado para o outro e bares e botecos davam um
sotaque paulistano ao local. Algumas pessoas comiam pastéis nas
mesas colocadas sobre a calçada e olhos sem vida transitavam,
carregando os corpos das pessoas de um lado para o outro, apressadas,
segurando relatórios, cheques, boletos e sacolas. Era algo muito
comum, quase todos os dias essa cena se repete.
Cheguei perto
de um semáforo, de longe avistei um menino negro, de aproximadamente 6
anos sem camisa sentado próximo a uma porta de ferro de um
estabelecimento que possivelmente estava desativado. Me aproximo e
percebo que perto dele estava dois limões, já logo imaginei que
seria o instrumento de seu trabalho, era um artista de farol, tem
vários por essa cidade, mas a maior parte das pessoas os chamam de
meninos de rua. Porém não era com os limões que mexia naquele
momento, ao seu lado estava um saco com alguns carrinhos de brinquedo
e ele estava brincando como se nada mais importasse. Colocava todos
enfileirados, como se estivesse administrando um estacionamento de um
shopping center, enquanto as possas quase o pisoteavam passando
apressadamente de um lado para o outro. Fiquei ao lado dele por algum
tempo, ele olhou pra mim mas nada disse e eu também não ousei dizer
nada, apenas senti sua presença, sua alma, seus olhos. Sai quase
chorando dali, enquanto observada outras pessoas que vinham em minha
direção, logo vi outras crianças, porém essas com sorvetes e bem
vestidas, era outra classe de seres humanos, eram vitoriosos por
nascença, enquanto aquele menino já nasceu derrotado.
Mesmo
abatido com a visão, prossegui o local de meu trabalho, mas como se fosse uma ocasião do destino, avistei em um muro, que até então nunca tinha reparado antes; nele estava gravado várias vezes o rosto de Carlos Marighella, olhei um pouco e pensei em tudo que aconteceu comigo naquele momento, então parti de vez. Entrei muito
quieto, sentei em minha mesa e ao meu lado uma moça me perguntou:
—
Aconteceu alguma coisa?
— Não,
somente encontrei-me com algumas pessoas invisíveis.
— Como
assim?
Logo expliquei superfluamente sobre o acontecido, em
seguida esperei sua reação.
— Mas cade a mãe desse menino?
Deve ser uma vadia, deixa ele jogado na rua.
Fiquei
calado por alguns instantes, infelizmente eu já esperava esse tipo
de reação então respondi.
— Talvez ele não tenha nem mãe.
Ela
prosseguiu sem compreender muito e eu me limitei ao silêncio.
Naquele
momento eu percebi que não era só o menino que era invisível, a
desigualdade também era invisível. Para muitos era uma questão de
mãe ou pai, mas se esquecem que não é só isso que constrói uma
vida. O segredo está na estrutura, se a estrutura é ruim, logo a
vida é facilmente destruída pelas dificuldades provocadas
exatamente por essa inexistência estrutural . Enquanto estamos
criando uma criança nas ruas, esquecemos que essa criança também
cresce e um dia não terá mais um rosto bonito, não receberá mais
esmolas por piedade e também não terá mais uma mãe para ser
''culpada'' por aquela sua situação. Agora o culpado é ele(a)
mesmo, um vagabundo, um criminoso... mas ninguém se importa se o
mundo já recebeu mal essa pessoa.
Ninguém nasce amando nem
odiando, ninguém nasce fazendo o bem ou o mal, ninguém nascendo
crendo ou não em Deus. Apenas nascemos.